Apresentação

Apresentam-se aqui coligidos 360 poemas da "Fase Inicial" (2005) da produção poética Valeriana, que tive o privilégio de acompanhar desde o início. A grande produtividade do trabalho literário deste nosso vate huilano ultrapassou a minha capacidade pessoal para manter a continuidade de publicação neste suporte, criado em 2008. Sendo de grande qualidade, estou certo de que a Poesia de Valério Guerra terá competentes divulgadores, à altura das exigências de seleção e edição. Aqui fica a minha singela e pioneira contribuição, dedicada a esse Eterno Amigo, irmão nas paixões angolanas. Zé Kahango

Noite, noite

Oh noite de mar chão e prateado
que acalentas as minhas aventuras
elanguesces o meu ser amoratado
e me trazes cioso de conquistas futuras!

Oh noite de mar revolto e acobreado
que me recordas as desventuras
e as estórias com um fim falseado
e me trazes amargo e em tristuras!

Tu, que buscas sentido no luar
e embalada adormeces no meu cantar
diz-me, feiticeira, porque te escusas ?

Sim, porque te negas Noite a mim pedinte
a dar um pouco da luz da lua que não usas
para que lucine a minha alma com requinte ?


20-06-2005

Cânticos

A minha alma cantou
dores e alegrias
em versos por onde ficou
o que por mim sentias.

Cantou cedo na alvorada
em voz altisonante
cantou apaixonada
a esperança no levante.

Cantou a meio da tarde
em frémito passageiro
a canção daquela tarde
do beijo primeiro.

Cantou alta madrugada
dos jardins o olor
cantou-se desesperada
por já não te ter, Amor.


20-06-2005

Incertezas

Vai distraída a ave que passa
do meu olhar a admiração
se é voo ou levitação
a beleza em que esvoaça.

Leva-me o pensamento
em cada batida de asa
estancando à porta de tua casa
indagando-se do momento...

Solta a ave um grasnido
que me acorda o recordar,
sem forças para entrar
volto embora arrependido.


20-06-2005

Mucufi

O sonho foi curto e deixou-me perpelexo
o caminho passava por ribeiras sem ponte
as rãs no seu coaxar clamando por sexo
o Mucufi, e os banhos que não sei se te conte.

As meninas que brincam lá atrás no pomar
os rapazes que as querem e não querem ser vistos
nus - roupa espalhada pelos seixos -, em pelota a nadar
e alguém atrás da bissapas rindo do que via, pelos vistos.

Eu nadava, nadava, mas não era água, era fonte
de um líquido ora palpável ora volátil, aromático
e o Mucufi mexia e remexia e eu ofegava em laços.

Soube assim que aquele paraíso era Vénus e Monte
e o revolto e rouçagar das águas me levaria em viagem, lunático
e que a terra e o céu já não eram..., só tu e eu nos teus braços.


20-06-2005

Pousada Da Leba

Na minha terra
se come galinha com pirão
"ó milongo ó tchange amé muto"
se come mesmo com a mão
da panela se come
calcinha ou não
o pirão se some
fazendo bola na mão
molha no conduto
rapa na galinha
vai matando a fome
ué!, não tem mais não?
Está onde o pirão então?
Se come só com molho
engorda só com o olho.
Ouvindo o kissange
ainda com fominha
passa os dedos na carapinha
o dente ainda range
na minha terra...


20-06-2005

Notas do Meu Diário

Não houve banho
nem a maresia fui cheirar
nem ao sol me fui deitar.
Começou o dia trocado
pois pensava ir nadar
-- e porque não vê-las passar --
e o que aconteceu ?
Levantou-se de sueste o vento
e o que não fiz foi lamento
porque estava esperançado
num banho de mar com o Tiago
- o amigo que no coração trago -,
e lá se foi a esperança
de galhofar com ele no mar
que numa alegria imensa a esbracejar
- como é bela a vida na surpresa -,
se diverte a nadar
ele, meu Deus e o mar
a súmula da beleza.


20-06-2005

Vozes

Nesta voz em que me tenho o que conheço
do timbre da manifesta alegria é o compasso
de que as palavras se envolvem e o abraço
afectuoso que te recebe amigo que mereço.

Nesta voz em que me tenho o que desconheço
é a afonia ou a rouquidão derivada da brusquidão
da palavra insultuosa sequela da discussão,
quantas inúteis, de espúrias razões que ofereço.

Nesta voz em que me tenho, o que gosto
são os tons melodiosos duma canção de amor
e as alegres notas que dançam ao som do tambor
no batuque, na marrabenta ou nas marchas, por oposto.


20-06-2005

Beijo

Quando um dia entrei em tua casa
e te vi na salinha bela e sorridente,
o meu coração pulicou de repente
louco estrangeiro num corpo em brasa.

E, oh maravilha das maravilhas
ao receberes-me beijaste-me a boca
e então, a minha alma louca
feita águia de Angola voou mil milhas.

E nunca mais parou..., a águia feliz
sobrevoa anharas, montanhas e savanas
exibindo-se na convicção que me amas.

E vai por todos os animais e diz:
"eu até voltava -- para comer --, a pousar
mas nem isso me assiste por tanto a amar!"

Recordações

Há dias em que vamos pelo rio das recordações
e outros há em que ele vem ter connosco
de surpreza, em conversas para lá do sol posto
no fresco da madrugada em refrescadas emoções.

Há dias que há muitas horas foi à pouco
outros há que muitas horas não aconteceram
e as águas dos rios da alma se perderam
ou dos leitos pedregosos vêm num falar rouco.

Há dias em que as recordações têm tal simbolismo
que a estrutura do ser se abala e abana no sismo
do porquê, por que razão, por que eu?

Outros há em que sem se esperar aconteceu
e de tanta saudade veio muito mais alegria
e quanto mais incompreendido mais consentiria.


20-06-2005

Notas do Meu Diário

Aconteceu
porque tinha de acontecer?
Alguém me ofereceu
um modo de te rever
ó Lubango.
Sabes quem me deu
notícias do teu viver?
A Elsa, o Anatóli e a Ludmila
acabadinhos de chegar da Huíla
com fresquinhas
da reconstrução
das jazidas descobertas
das águas quentes da Montipa
até da Chipipa
tive ofertas
até das farinhas
do pão e do pirão...
Fiquei de ti a saber
ó Lubango
meu saudoso jango!


20-06-2005

Ô Kamukanda

Querida
engomei-te aquela blusa
magenta carmesim,
sabes,
do primeiro encontro,
o nosso talismã.
Sinto-te longe..., enfim,
e esta manhã
preparei-te a blusa
para que voltes para mim!


20-06-2005

Secaram-se as Flores

Era dia e se fez escura noite de repente
e a noite encobriu o quarto minguante
e tu maldade à bolina e mareante
em tuas asas me levaste a paixão, e de repente

na rua onde o meu coração se sente
outrora a mais bonita e perfumada
onde o meu ardor melhor se tem na chamada
secaram-se das varandas as flores, de repente

e elas que em sã competição se faziam cheirosas
se alindavam de petalas e corolas vaidosas
murcharam em coro, ressentidas, e de repente

não mais brilhou o sol e a lua naquela rua
e a alegria despediu-se da vivacidade e ficou nua
e a minha alma enfadonha se tornou de repente.


20-06-2005

Neblina

Horizonte meio indefinido
neblina, mar chão verde água,
não me aquece o sol escondido
espraio em calma a mágoa.

Na vastidão vejo o que não vejo
no areal pegadas do teu andar
humidade, lágrimas que gotejo
este sol que tarda em me animar.

Fraco fluxo e refluxo da maré
meu querer oscilante e contuso
teu sorriso d'escárnio e má fé.

Foi hora adiantada no fuso...
Ó mar embala a minha tristeza
engana-me o sol na sua frieza.


20-06-2005

Fazes-me Falta

É mar
aberto
mar, mar
a bombordo
a estibordo
à proa
à esquerda, à direita
em frente
praia feita mar de gente
alguma contrafeita
outra impertinente
mar batido de onda alta
areia escaldante
sol inclemente
nada faz falta!

Nada faz falta?

Sim, tu
sorridente
toalha estendida
óleo bronzeador
de cacau o odor
lânguida, descomprometida
maçã e serpente
revista a condizer
tentação ardente
maré alta
marulhando a dizer
fazes-me falta
fazes-me falta...

Agita-se a areia
remexe-se... a remexer
como em minha ideia
és meu viver
és meu viver
na escuridão candeia
não vivo sem te ver
fazes-me falta
fazes-me falta...


20-06-2005

Secreta Combinação

Há entre mim e o mar
uma secreta combinação,
eu digo-lhe do meu penar
e ele de sua danação.

Falo baixo, a chorar
d'espinhos no coração;
fala-me do marear
na sua rebentação.

Diz-me que é tão grande,
mais que meus olhos vêem...
Mais que meus olhos vêem?

Nem os deuses prevêem
ao céu, ao infinito
o meu sofrer maldito!


20-06-2005

Confidente Natureza

Tenho d'amiga uma acácia
onde mora um seripipi,
por confidente uma águia
que te segue e em seus olhos te vi.

Na fresca sombra da velha árvore
ouvindo o canto do seripipi,
teu nome guardo em róseo mármore
-- eternidade que me quero em ti --.

Passa a águia e diz contente:
«graciosa de cabelos ao vento
vem pela vereda feliz e a correr...»

Termino apressado, finalmente,
o choro do cinzel, o meu lamento,
e limpo do meu rosto o meu sofrer!


20-06-2005

Mar Imenso

Trago dentro de mim um mar imenso
e o amor que tenho nele é guardado
porquanto outro lugar não ser indicado
indo o coração e o mar em concenso.

E quanto mais amor mais mar imenso
mais da água salgada virá água adocicada
mais a paixão navega pelo vento acicatada
e mais o coração é ao amor propenso.

Quanto mais mar mais ao amor pertenço
mais a lua apaixonada brinca com a maré
porquanto o vento ateia as velas da fé.

E se ao mais mar se suplantar o amor imenso
mais se despede a saudade do lenço
mais amor o mar guardará na volta da maré.


18-06-2005

Visto na Esplanada

Bem, eu gosto delas de todas as maneiras,
mas essas em grandes saltos altos empoleiradas
que me lembram garças esguias desempoeiradas
em dança de cio desbragadas e fragueiras...

Bem, essas voltam-me a cabeça de tal modo
que vejo tudo trocado. Florestas no deserto,
o sol de noite, a lua saltitando em campo aberto
e nem no meu sofá velho me acomodo.

Para minha tranquilidade tenho óculos escuros
que me resguardam de assaltos à idoneidade
(desculpa ponposa da velha questão da idade)
e no meu recanto conjecturo os saltos dos muros...


18-06-2005

Este Amor Que Me Inquieta

Este amor que me inquieta, que ao tempo resista,
porquanto mais te quero mais me exponho
e quanto mais te realizo mais sonho
e se mais te sonho mais te tenho à vista.

E se mais te vejo mais enlouqueço
porque se mais me deslumbras mais me perco
e a surpresa adocica o meu coração aberto
e quanto mais te oiço mais te ofereço.

Quanto mais te amo mais me desengano
e o sangue corre quente e em turbilhão
porquanto mais me foges mais te tenho à mão.

E um só, um só dia que passa parece um ano
e se mais não te digo mais me aflijo
e quanto mais te quero mais me exijo!


18-06-2005